PAIVA, V.L.M.O. A língua inglesa aos olhos dos sambistas. SIGNÓTICA.Goiânia, ano , n.7, v.7, p.133-147. jan./dez.1995.
Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva*
Este trabalho demonstra como o samba, sempre atento às transformações impostas a nossa sociedade, toma a si o papel de defensor da cultura brasileira insurgindo-se contra o modismo do uso indiscriminado de vocábulos da língua inglesa. No entanto, ao dirigir sua crítica às classes populares, acaba contribuindo para propagar o preconceito contra essas mesmas classes.
A presença de signos em língua inglesa na música popular brasileira começa a ser observada na década de 20. No teatro de revista temos o registro de duas peças com nomes em inglês: Jazz-band em 1923 e Off side em 1924. Em 1927, Araci Cortes estréia duas revistas, Champagne e Oooó, onde apresenta uma postura americanista cantando o curioso samba Black-bottom, futurando uma mistura de ritmos e de concepções que, então, parecia impossível viesse a acontecer... (Ruiz, 1984:89). Em 1929, Araci lança, na revista Compra um bonde, a música Sapateando, conhecida também como Fox-trot, de Ari Barroso e Luiz Iglésias. A canção era uma apologia exagerada do ritmo americano. Essa postura americanista é mais tarde renegada por Ari Barroso, em entrevista ao Correio da Manhã, em 26 de janeiro de 1930, como registra EFEGÊ (1978:162). Dizia Ari:
"Quando o jazz começou a invasão pela nossa terra eu fui a
primeira vítima. Apeguei-me em cheio tal joça e acabei pianista-jazz!..."
Depois concluiu numa confissão dolorida: "E foi como pianista-jazz que cheguei ao lugar que me pôs a bondade extrema, a benevolência indescritível do povo carioca.
Segundo Ruiz (1984:128),
A presença da música americana após a inauguração, entre nós,
da época do cinema falado pode ser assinalada praticamente em todas as
revistas teatrais do tempo, quase que como exigência de atualização,
como convinha ao gênero. E se às vezes era laudatória a letra colocada
naqueles ritmos, de outras era francamente gozadora e crítica.
Dentro desse espírito de crítica, aparece um fox non sense na revista musical Às Urnas, da qual participaram vários autores, como Sinhô e Ari Barroso, Luiz Iglésias e Freire Junior, os dois últimos responsáveis pela letra que dizia:
Gud bai
Blaque boton queque uoque
Les ingenues de New York
City prove noter pol
Ó Yess
Blaque boton queque uoque
Les ingenues de New York
Fut bol
Uoter pol
O espi kingles
Very uell tank yu
Ao ary yu
Au love yu
Yess
City Bank gude naite
Gude bay
Les ingenues de New York
Fut bol
Outer pol
Como podemos ver, a letra é uma justaposição de signos em língua inglesa, familiares aos ouvidos do povo brasileiro, ortográfica e foneticamente adaptados ao código português. Segundo Ruiz (1984:128), a canção é
uma mixórdia de palavras estropiadamente escritas, propositadamente atiradas ao ritmo, numa autêntica gozação àqueles que andavam coletando versos das canções americanas lançadas pelos filmes.
A partir da década de 30, intensifica-se a influência americana através do cinema falado. O american way of life é glorificado em nossas telas e a elite, que até então usava e abusava dos empréstimos da língua francesa, adere à moda do inglês exportado pelos Estados Unidos. O samba, sempre atento às influências culturais e ao comportamento da classe dominante, nunca perdeu a oportunidade de criticar e denunciar o que era considerado índice de aculturação. Um bom exemplo dessa denúncia é o samba de Noel Rosa, Não tem tradução, que diz entre outras coisas que
O cinema falado
É o grande culpado
Da transformação
e que
Amor lá no morro é amor prá chuchu
As rimas do morro não são "I love you"
E esse negócio de alô
Alô boy, alô John,
Só pode ser conversa de telefone...
Em 1932, Lamartine Babo compunha o fox-humorístico Canção para inglês ver. Na partitura, Lamartine nomeia o gênero como "fox-charge". Vejamos a letra do que foi considerado como a obra prima do non-sense de Lamartine:
I love you
forget sclaine
mine Itapiru
morguett five underwood
I shell,
no bond Silva Manoel
Manoel
Manoel
I love you
To have steven via-Catumby
Independence lá do Paraguay
studebaker... Jaceguay!
Iés, my glass (bis)
salada de alface (bis)
fly tox my till...
standard oil...
.................................
Forget not me
Of!...
I love you!
abacaxi... whisky...
off chuchu
malacacheta; independence day
no street-flesh me estrepei...
elixir de inhame (bis)
mon Paris je t'aime...
sorvete de creme...
my girl good-night
oi!
double fight
isto parece uma canção do oeste
coisas horríveis lá do far west
do "Thomas Meiga"
com manteiga!...
My sandwich!...
eu nunca fui Paulo Escrich!
meu nome é Larky and Claud
-John Felippe Canaud
..........................
Light and Power
Companhia Limitada
Ai! You!
The boy-scott avec
boi Zebu
Lawrence Tibeti com feijão tutu
trem de cozinha
não é trem... azul!
Lamartine faz uma "salada" de signos em língua inglesa conhecidos no Brasil, inventa outros e os mistura a signos em língua portuguesa. Essa mistura se transforma num jogo rimado dentro do ritmo do fox-trot. A justaposição dos signos funciona como metáfora de sua visão crítica da cultura brasileira, na década de 30, pois nessa década, ensaia-se um movimento em favor da música popular brasileira que pode ser detectada em outras composições como Não tem tradução, Alô John e Good Bye.
Lamartine Babo, ao denominar a canção de "fox-charge", já nos adianta que sua intenção é satirizar e provocar o riso diante de um fenômeno que ele rejeita: a invasão da música americana na figura do fox-trot. Para atingir esse efeito, caricaturiza o estilo musical compondo um fox acompanhado de uma letra non sense, em forma de signos deslocados de seus eixos sintagmáticos/paradigmáticos. O texto verbal, enquanto signo em si mesmo, de acordo com a semiótica peirciana, é apenas um qualissigno, uma qualidade que só nos aparece em forma de sensação, a sensação de se estar ouvindo algo em inglês. Os signos, que somados deveriam formar um texto coerente, não representam objeto algum, são signos a procura de seus objetos. São remas, ou seja, signos representantes de objetos possíveis, que permitem a cada ouvinte/leitor inúmeras possibilidades de interpretação. O título já nos avisa que não devemos levar este "fox" a sério, pois a expressão "para inglês ver" significa algo que aparenta ser o que não é, simula e oculta uma realidade não conveniente". A letra da canção é só "para inglês ver". O jogo polissêmico dos significantes gera interpretações interessantes. Assim, "shell", por exemplo, na primeira estrofe, tanto pode ter como interpretante a Companhia de Petróleo Shell como o modal "shall", que combina sintaticamente com o pronome pessoal de primeira pessoa do singular "I". A rima "I love you" "com chuchu", que Noel vai repetir no seu samba Não tem tradução, aparece na segunda estrofe precedida pelos signos "abacaxi" e "whisky", representando respectivamente símbolos do nacional e do estrangeiro. Poucos versos, além de "I love you", são semanticamente decodificáveis, mas mesmo assim o texto produz sentido. Na primeira estrofe, encontramos o verso, já citado, "I shell", que pode ser semioticamente decodificado como índice de perda de identidade nacional, pois, na época em que esse samba foi composto, o petróleo ainda não "era nosso". Na segunda estrofe, encontramos "No estreet-flesh me estrepei...", sendo "street-flesh a pronúncia aportuguesada para straight flush, metonímia de jogo de pôquer (poker), também importado dos Estados Unidos. O verso em francês, "Mon Paris je t'aime" pode ser interpretado como índice de saudosismo da cultura humanista européia que estava sendo trocada pelo cultura tecnicista americana. Essa sensação é reforçada pela ambigüidade do verso "Coisas horríveis lá do far west", na mesma estrofe. "Far west" pode ser lido como índice dos filmes que retratam o desbravamento do oeste americano e, ao mesmo tempo, como índice, portanto metonímia, dos Estados Unidos. Outros signos como, "Shell", "Standard Oil" e "Light and Power", aparecem como signos de colonização.
Uma outra sátira que merece nosso comentário é a marcha Good Bye, de Assis Valente.
"Good-bye, good-bye boy", deixa a mania do inglês
Fica tão feio prá você, moreno frajola
Que nunca freqüentou as aulas da escola
"Good-bye, good-bye boy", antes que a vida se vá
Ensinaremos cantando a todo mundo
B-e-bé, b-i-bi, b-a-bá
Não é mais boa noite, e nem bom dia
Só se fala "good morning, good night"
Já se desprezou o lampião de querozene
Lá no morro só se usa a luz da Light (Oh! Yes)
Essa marcha tenta persuadir o ouvinte a condenar a atitude do povo simples do morro que, na tentativa de se parecer com a elite, começa a usar expressões em inglês. Há um verdadeiro manifesto pela preservação da cultura nacional, materializado não apenas na rejeição da língua estrangeira, mas também na não aceitação do avanço da civilização, aqui representado pela luz elétrica. O vocativo "moreno frajola" separa a figura do interlocutário do destinatário ouvinte, tentando conseguir a adesão ideológica desse último. O ouvinte não é censurado por usar expressões em inglês. O alvo da censura é o "moreno frajola que nunca freqüentou as aulas da escola". A descriminação de classe é clara na canção. Ao homem do povo é vedada a educação, a aprendizagem e o uso da língua estrangeira, e até o conforto, pois o autor se ressente do fato de o lampião de querosene ter sido substituído pela luz da Light.
Em março de 1933, Jurandir Santos grava, de sua autoria, a "marcha turística" Alô John. O autor/destinatário/locutor/interlocutor se dirige ao turista/interlocutor, tentando persuadi-lo a participar do carnaval brasileiro. Diz a letra:
Alô John
Cambeque prá folia
Se não reve mone
Não faz mal
Alô, ô, ô, ô
Alô John
Cambeque prá folia
Inde Brasil
Reve muito chope
Opp opp (bis)
American if drinque
Não estope
Opp opp (bis)
No carnaval
No bode chilipe
Ipe, ipe (bis)
American cambaleia
Como chipe
Ipe, ipe (bis)
A marcha é um convite ao turista americano para passar o carnaval no Brasil. O apelo ao prazer está presente nos signos estereotipados da cultura brasileira: folia, orgia e bebida (chope), todos índices de carnaval. A persuasão é feita através da oferta do prazer e da garantia de não ser preciso ter dinheiro (se não reve mone não faz mal). O dêitico vocativo Alô John identifica o interlocutário que se diferencia do destinatário ouvinte que fica como observador da conversa, como testemunha do convite que é feito ao turista americano. Signos do código lingüístico inglês são adaptados fonológica, ortográfica, e sintaticamente à língua portuguesa.
O mesmo procedimento de adaptação de um código ao outro aparece na marcha OK, de Jurandir Santos, gravada por Lamartine Babo e Carmem Miranda, em 1934. Vejamos a letra:
Ô quei, ô quei
Estope que eu já cansei
Ii... Ii... esse ife iu plise
Ô quei
Por tua causa foi que me cansei
Luque... luque para mim
Vê como estou fagueiro
ô ô...ÔÔ...ÔÔ...quei
I ai reve pouco dinheiro
Chête... chête... dice dar
Estão nos espiando
ô ô...ÔÔ...ÔÔ...quei
Embora se esteja brincando
Jurandir Santos estabelece, nesta marcha, um diálogo com sua composição anterior, Alô John. O locutor/interlocutor pode ser o John que teria atendido o convite para voltar (cambeque) para a folia e diz ok, aceitando o convite. O interlocutor confessa seu cansaço, pede para parar (estope) e admite que tem pouco dinheiro (ai reve pouco dinheiro), reforçando a hipótese levantada na marcha anterior (se não reve mone, não faz mal).
Os signos em língua inglesa aparecem em outras composições. Assis Valente, que já havia registrado a influência do inglês na cultura brasileira em Good-bye, observa o interesse americano pelos nossos ritmos e compõe o samba Brasil Pandeiro. Recusado por Carmen Miranda pela irreverência da letra, o samba foi gravado pelo grupo "Anjos do Inferno", em 1941.
Brasil Pandeiro.
Chegou a hora dessa gente bronzeada
Mostrar seu valor
Eu fui à Penha
E pedi
À padroeira para me ajudar
Salve o morro de Vintém
Pendura a saia
Eu quero ver
Eu quero ver
Eu quero ver o tio Sam
Tocar pandeiro
Para o mundo sambar.
O tio Sam está querendo
Conhecer a nossa batucada
Anda dizendo que o molho da baiana
Melhorou seu prato
Vai entrar cuscuz
Acarajé e abará
Na Casa Branca
Já dançou a batucada
Com Iôiô e Iaiá
Brasil, Esquentai vossos pandeiros
Iluminai os terreiros
Que nós queremos sambar.
Há quem sambe diferente
Noutras terras
Outra gente
Num batuque de matar,
Batucada
Reuni vossos valores
Pastorinhas e cantores
Expressões que nGo tem par
Oh! meu Brasil,
Brasil
Brasil esquentai vossos pandeiros
Iluminai os terreiros
Que nós queremos sambar
Segundo Sant'Anna (1986:209), Brasil Pandeiro poderia significar essa posição muita vez ambígua que valoriza o nacional, mas se desvanece ante o reconhecimento lá fora. Esse reconhecimento, na verdade, nada mais é do que uma estratégia da chamada política de boa vizinhança, posta em prática pelos Estados Unidos. Sob o pretexto de se estabelecer um intercâmbio cultural entre os Estados Unidos e a América Latina, consolida-se a hegemonia americana. Através de iniciativas de intercâmbio cultural, Carmen Miranda foi para a América e, indiretamente, ajudou a difundir a imagem estereotipada e exótica do Brasil. Em Brasil Pandeiro, Assis Valente reproduz essa imagem exótica, povoada de iôiôs e iaiás. Aliás, há na canção uma referência ao sucesso de Carmen nos Estados Unidos, quando o poeta diz que (o Tio Sam) anda dizendo que o molho da baiana melhorou seu prato.
Os signos em língua inglesa continuaram a ser usados no samba, quase sempre com o objetivo de criticar o americanismo. Os habitantes da favela continuam sendo o alvo principal das críticas à adesão aos ritmos americanos. Denis Brian, compositor paulista, é mais um que se incumbe de criticar a imitação dos comportamentos americanos. Segundo Gomes (1987:34), Denis Brian bandeou-se a falar dos crioulos de uma favela bem carioca, e que viviam entusiasmados com o lançamento do boogie-woogie na década de 1940. Os versos de Brian diziam
Chegou o samba minha gente
lá da terra do Tio Sam com novidade
E ele trouxe uma cadência maluca
pra mexer com a cidade,
O boogie-woogie, boogie-woogie
Boogie-woogie
a nova dança que balança, mas nGo cansa,
a nova dança que faz parte da política
da boa vizinhança
Na década de 70, o sambista João Nogueira grava Não tem tradução, de Noel Rosa e, em 1986, Eu não falo gringo, de sua autoria, em parceria com Nei Lopes, retomando o tema de crítica ao americanismo e à influência da língua inglesa na cultura brasileira.
EU NÃO FALO GRINGO
Eu não falo gringo
Eu só falo português (bis)
Meu pagode foi criado
Lá no Rio de Janeiro Refrão
Minha profissão é bicho
Canto samba o ano inteiro
Eu falei prá você
Eu aposto um "eu te gosto"
Contra dez "I love you"
Bem melhor que hot-dog
É rabada com angu
Gerusa comprou uma blusa
Destas made em USA
E fez a tradução
A frase que tinha no peito
Quando olhou direito
Era um palavrão
Refrão
I speak for you
Refrão
Ou me dá um terno branco
Ou não precisa me vestir
Bunda de malandro velho
NGo se ajeita em calça Lee
As vezes eu sinto um carinho
Por este velhinho chamado Tio Sam
Só não gosto é da prosopopéia
Que armou na Coréia e no Vietnã
Refrão (bis)
Tem gente que qualquer dia
Fica mudo de uma vez
Não consegue falar gringo
Esqueceu do português
Tu é dark, ele é hippie, ele é punk
Todos dançam funk lá no dancin'days
Mas cuidado com este paparico
O FMI tá de olho em você.
Refrão
Brasileiro eu falei
Na gravação de João Nogueira, segue-se a seguinte parte falada: Everybody macacada. Não tenho nada contra, mas desmunheca em brasileiro. Vamos valorizar o produto nacional.
Como podemos constatar, o locutor/destinador se identifica como carioca, malandro velho, ligado ao jogo do bicho e ao samba, signos que se atualizam como índices de brasilidade. O refrão reforça essa brasilidade, quando o destinador afirma que não fala "gringo" (idioma estrangeiro/inglês), mas "brasileiro" (idioma nacional). Encontramos uma intertextualidade com o texto de Noel Rosa, Não tem tradução, que diz: "amor lá no morro é amor prá chuchu/as rimas do morro não são I love you". Em Eu não falo gringo, os autores desprezam a proposição estrangeira e pregam a superioridade da proposição "eu te gosto". Há também uma crítica ao hábito americano do fast food que vem sendo adotado pelos brasileiros cosmopolitas. Os autores dizem que "rabada com angu" é melhor que hot dog.
A alienação do brasileiro é atacada quando se faz referência à moda das camisetas com dizeres em língua inglesa, geralmente não decodificados por seus usuários, o que pode gerar constrangimento como o descrito na canção. A crítica ao modo de vestir se extende à calça Lee, outro símbolo americano. A belicosidade americana é criticada na condenação às guerras da Coréia e do Vietnã. Na última estrofe, os autores criticam a adesão aos ritmos estrangeiros e às novas formas de comportamento, divorciadas da cultura brasileira. Finalmente, o problema econômico é abordado com relação ao "Fundo Monetário Internacional". A sigla FMI, capaz de gerar uma cadeia de interpretantes relacionados com os problemas econômicos, é colocada lado a lado com outros índices (hippie, dark, funk, punk, Dancin'Days), reforçando a idéia de dependência cultural e econômica. Ao final de sua interpretação, o cantor critica a mania de imitação e prega a valorização do produto nacional.
O samba, desde o advento do rock, vem perdendo seu espaço nos meios de comunicação, que se rendem ao fascínio pelos produtos estrangeiros. As estações FM praticamente só tocam música estrangeira, principalmente americana. Os sambistas estão sempre denunciando a diminuição do espaço para divulgação de sua música. Dentro deste espírito, o sambista Dicró grava, em 1988, o samba Mr. Dicró, de sua autoria e que também dá nome ao LP lançado pela RCA Victor. Em Mr. Dicró, o compositor denuncia a supervalorização do que é produzido em inglês em detrimento do samba autêntico e do idioma nacional, registra o fascínio pela moeda americana e o desejo de se fazer sucesso no exterior. A gravação começa com uma
abertura musical ao estilo dos musicais da Broadway com a voz de um locutor que diz: And now
ladies and gentlemen, RCA Victor do Brasil presents Mr. Dicró (daicró). A apresentação gera uma expectativa no ouvinte, que é em seguida quebrada pelo dialeto português não-padrão do sambista: Tá aqui ó, gente boa, tá aqui ó. Legal mermo. O cantor tenta cantar uma canção em inglês, facilmente identificada como All the way (um dos grandes sucessos de Frank Sinatra), mas, desiste no primeiro verso dizendo, Nossa Senhora, mas não vai dá não e, em seguida, dirige-se ao maestro e diz, Maestro, dá aquele tom se o senhor é home. E o samba começa:
É, pois é
Eu também já mudei de opinião
Vou querer ganhar em dólar
Escondido do leão
(camon everybody)
Vou traduzir meus pagodes
Vou cantar só em inglês
Vou tocar nas FMS
Isso eu garanto a vocês
Pode me acreditar
O povo vai pedir bis
Quando eu me apresentar
No Olimpia de Paris
(au revoir)
everybody macacada
Vou ganhar muito dinheiro
Sendo internacional
Vou armar um bom pagode
Lá no palco do Carnegie Hall
Vou curtir Miami Beach
Em vez de Copacabana
Em Cash Box e Pearl Burg
Vou estar toda semana
Em Miami e Las Vegas
Eu sei que vou abafar
Pois em língua sou formado
Nos botecos da praça Mauá
Cachaça só on the rock
Whisky só escocês
I need to lover
There where's do not disturb
I want to live in Chatuba
A letra inicia com a promessa do autor de traduzir seus "pagodes" e cantar em inglês, pois, em sua opinião, essa é a forma de ser valorizado e ganhar dinheiro. Essa intenção é parodiada na última estrofe "em inglês", na realidade um "embolês". A gravação se encerra com uma fala do cantor onde ele ironiza a mania do uso de expressões em inglês. Diz ele:
Vou levar minha black girl, não black girl é minha nega. E como é se fala sogra em inglês mesmo? Sei lá. Acho que em que inglês nem tems ogra. Meu negócio agora é money. Tá aqui ó, rapaziada. Tá aqui. Adeus, ó ECAD do Brasil.
A crítica de Dicró difere das anteriores, porque não fica limitada à questão do uso da língua inglesa na sociedade brasileira. Ele vai além, ao denunciar a perda de espaço para a divulgação da música nacional, e até aborda a questão dos direitos autorais, quando dá adeus ao ECAD (Escritório de Arrecadação e Distribuição), órgão responsável pela arrecadação dos direitos autorais, tão criticado pelos artistas brasileiros. Ao trocar, simbolicamente, o Brasil pelos Estados Unidos, o artista não apenas anuncia a possibilidade de fazer sucesso lá fora, como também a de ver respeitados seus direitos autorais.
Podemos afirmar que, praticamente, todas as vezes em que encontramos signos em língua inglesa no samba, esses signos estão a serviço da crítica ao imperialismo econômico e cultural, exercido pelos Estados Unidos, e ao fascínio que os brasileiros sentem pelo american way of life. Os desvios sintáticos e as alterações fonológicas servem para reforçar o fato de que as classes populares, metonimicamente representadas pelos sambistas, não têm conhecimento da língua inglesa. Essa falta de intimidade com o idioma estrangeiro traz, como conseqüência, uma certa falta de prestígio social. Se por um lado, o samba se empenha em defender a cultura brasileira, insurgindo-se contra os modismos importados dos EEUU, por outro lado colabora na propagação da ideologia que justifica a divisão de classes, pois o objeto da crítica é sempre o proletariado. Podemos, pois, concluir que a noção de cultura brasileira que o samba divulga, principalmente na década de 30, é ingênua e estereotipada.
This paper demonstrates how some Brazilian samba songs, mainly the ones from the 1930s, criticize the excessive use of English words by Brazilians. This attempt to defend the Brazilian culture, nevertheless, contributes to highlight the prejudice against the underpriviledged classes.
Referências Bibliográficas
EFEGÊ, Jota [João Ferreira Gomes]. Figuras e coisas da músicapopular brasileira. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1978
GOMES, Bruno. Adoniran; um sambista diferente. Rio de Janeiro: Martins Fontes\FUNARTE, 1987. (MPB, 21)
RUIZ, Roberto. Araci Cortes; linda flor. Rio de Janeiro: FUNARTE, 1984.
PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira e. A língua inglesa enquanto signo na cultura brasileira.Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFRJ, 1991. (Tese de Doutorado)
SANT'ANNA, Affonso Romano de. Música popular e moderna poesia brasileira. 3. ed. Petrópolis: Vozes, 1986.